sábado, 28 de julho de 2012

Elizabeth Siddal e a podridão por trás dos ideais de beleza

A história de Elizabeth (Lizzie) Siddal não é das mais bonitas ou felizes.

Descoberta pelo pintor Walter Howell Deverell na loja onde trabalhava como assistente de chapeleira, ela fez seu primeiro trabalho como modelo de Viola para o quadro "Noite de Reis".

Noite de Reis (Twelfth Night), Walter Howell Deverell
A partir daí, a jovem, que tinha "ar de beleza etérea", pele branquíssima e longos cabelos ruivos, chamou a atenção de todo o grupo pré-rafaelita. Os Pré-Rafaelitas (começo da década de 1850) formavam uma Irmandade de artistas avessos à tradição acadêmica que lhes era ensinada na Royal Academy of Arts e que aspiravam uma volta à "pureza" pictórica e espiritual da arte feita antes do renascentista Rafael. Seus temas geralmente eram extraídos da literatura e eles se concentravam no detalhe da natureza. Ainda, segundo Francine Prost em A Vida das Musas, "assim como a sua arte, a existência diária dos pré-rafaelitas era afetada, autoconsciente, teatral e cheia de estilo" — ótima observação.

Dentre o grupinho, aquele que mais se encantou com a bela Elizabeth foi um de seus fundadores, Dante Gabriel Rossetti, que passou a tê-la como modelo para quase todos os seus quadros, gradativamente impedindo que ela posasse para outros artistas. Uma excessão foi feita para a seguinte tela, que você provavelmente já viu:

 
Ofélia (Ophelia), John Everett Millais
Para representar a protagonista morta, afogada, Lizzie teve que entrar numa banheira e acabou ficando doente quando as lâmpadas usadas para aquecer a água se apagaram e ela ainda permanceu lá por horas. Quase não precisou fingir que era um belo cadáver...

No relacionamento com Dante Gabriel, Lizzie foi tutelada na arte do desenho e da pintura, com o intuito de transformá-la em "gente do bem". Não que a família Rossetti fosse rica ou pelo menos com mais dinheiro que a família Siddall (do 'Siddal' de Elizabeth foi retirado um "L", pois Dante acreditava que assim pareceria mais elegante), mas enquanto o pai dela era um ferreiro ou cuteleiro, o pai dele era um professor que escrevia livros sobre Dante (o Alighieri).

Rá! E daí a gente começa a perceber o nível de perturbação & deformação da realidade do pintor. A obssessão do velho Rossetti por Dante estendeu-se ao filho que ele batizou em homenagem ao escritor (originalmente Gabriel Charles Dante Rossetti). Esse gesto refletiu na juventude do rapaz, que além de rearranjar seus nomes, esperava encontrar para si a Beatriz que inspirou o Dante do século XIII. Lizzie Siddal entra em cena e vira sua Beatriz, sua musa. O idílio amoroso começou...

Beatriz encontrando-se com Dante numa festa de casamento nega a ele seu cumprimento (Beatrice meeting Dante at a marriage feast, denies him her salutation), Dante Gabriel Rossetti


Até certo ponto.

Quando se conheceram, Lizzie tinha 17 e Dante, 22 anos. Espia que gatinho, aos 18/19 anos:

Autorretrato, Dante Gabriel Rossetti

Casal jovem, casal bonito, casal pra casar. Não fosse pela falta de interesse dele em oficializar alguma coisa com Lizzie. O tom das cartas em que menciona sua amada vai mudando alguns anos depois de se conhecerem. Lizzie anda doente. Os médicos vitorianos dão diagnósticos vagos e receitam láudano (ópio diluídio em álcool), que no século XIX era frequentemente utilizado para acalmar as crises físicas e psicológicas dos considerados inválidos e hipocondríacos, especialmente mulheres. Em Lizzie, seu uso acabou resultando em inquietação, fraqueza, vômitos — e maiores doses do 'remédio'. O vício em ópio apagou um pouco da beleza, brilho e todos os tralalás admirados pelos pré-rafaelitas. Logo, Dante passou a ser atraído por e a pintar outras modelos (e fazer sexo com elas).

Isso afeta, é claro, Lizzie, que parece ter consciência da sua condição ameaçada de musa. Ela escreve poemas e em um deles, diz o seguinte:
Não me interesso pela alma de minha Dama
Apesar de seu sorriso, a meus olhos quase santo;
Não me interesso pela sorte de minha Dama
Quando sua beleza perder, por fim, todo o encanto.
No quadro abaixo, enquanto Lizzie é retratada como Beatriz sem vida, Annie Miller, uma das amantes do pintor, é uma das voluptuosas criadas.

O Sonho de Dante na hora da Morte de Beatriz (Dante's Dream at the Time of the Death of Beatrice),
Dante Gabriel Rossetti
Em 1860, quando a saúde de Lizzie ficou tão deteriorada que todos esperavam que ela fosse morrer de fato, Dante Gabriel resolveu que era hora de casar. Na lua-de-mel em Paris a saúde da noiva melhorou consideravelmente, longe das amantes do marido, tanto que eles cogitaram não mais voltar a Londres. Mas ficou só na ideia, e tão logo retornaram, ele continuou pintando suas amantes (sendo Fanny Conforth aquela que o amparou após a morte de Lizzie). Cansada de tanto aborrecimento, ela chegou a se afastar de casa, mas acabou voltando e ficando grávida. Porém, há tantos anos doente, em maio de 1861 Lizzie deu à luz um bebê natimorto. E isso só agravou mais seu estado frágil.

Em fevereiro de 1862, depois de voltar de um jantar, Lizzie foi deixada sozinha por Dante Gabriel por duas horas. Quando ele retornou, ela estava na cama totalmente inconsciente. O frasco de láudano na mesa de cabeceira estava vazio. Um médico foi chamado, mas às sete da manhã seguinte, ela estava morta. Ela somente foi enterrada três dias depois e William, irmão de Dante alegou que "Lizzie ainda estava mais bonita do que antes, e Dante praticamente se recusava a acreditar que ela estivesse mesmo morta — talvez fosse apenas um transe, consequência do láudano". Seu esposo chamou o médico de volta para avaliar a situação da defunta. Quando não tinha mais o que discutir em relação a isso, Dante Gabriel se cobriu de culpa, desespero, e ao pé do caixão pedia a Lizzie para voltar, que ela era a única mulher com quem ele realmente se importava, que amava.

Talvez fosse verdade mesmo. Posto que ela estava tão morta quanto a mulher fonte de inspiração de outro homem, de outro século e que tanto era idealizada por ele.

Creepy Post Scriptum -> A morbidez continua quando, sete anos depois da morte de Lizzie, Dante Gabriel manda exumá-la para recuperar os manuscritos dos poemas que ele enterrou junto aos cabelos dela. Diz que ela (e sua cabeleira) estava intacta, mas os manuscritos não tiveram a mesma sorte e estavam molhados e comidos por vermes. Acabaram sobrevivendo apenas três páginas.

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